PROGRAMA DO CURSO E CONTEÚDO

UFF-UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
ICHF-GSO - Curso de graduação
Profª Selene Herculano
Programa do curso, módulos e seu conteúdo;roteiro de exercício de pesquisa

Conteúdo do módulo 1



MÓDULO 1: A construção do conhecimento científico e suas críticas. O alcance da verdade. Ciência, ideologia e poder. A Teoria. Neutralidade e a construção do objeto. As Ciências Humanas: surgimento e paradigmas

O conhecimento humano tem 4 formas (LAKATOS & MARCONI; HERCULANO):
O conhecimento popular ou do senso comum: a doxa
O conhecimento mágico-religioso: o dogma, os mistérios
O conhecimento filosófico, reflexivo: a metafísica
O conhecimento científico: a teoria

O conhecimento científico moderno é conceitual  e sistemático como o filosófico, mas é também factual, empírico, experimental, verificável e pretende ser neutro nos seus valores.
Saber para prever, prever para prover” é um lema positivista, eternizado por Augusto Comte (1798-1857) e põe em foco o caráter instrumental do conhecimento, que é o de ganhar controle sobre as coisas, o que é dado pelo estudo da relação entre fenômenos, de forma a desvendar leis de regularidade entre eles e assim antecipar acontecimentos.
O sentido do conhecimento na perspectiva positivista é tornar o mundo previsível - saber para prever, prever para prover. (Certamente inspirado em Francis Bacon: "saber é poder".)

         "Todos os fenômenos estão sujeitos a leis invariáveis, cuja descoberta precisa e cuja redução ao menor número possível constituem o objeto dos nossos esforços." (Comte, Curso de Filosofia Positiva)

Mas o conhecimento humano é também circunstanciado: quem conhece, conhece a partir de um ângulo de visão, uma perspectiva, uma trajetória de vida, uma cultura e até seus sentimentos. Vale dizer então que o conhecimento humano é um constructo, uma construção social e portanto variável. O que eu vejo depende do meu ângulo de visão e de meu aparato conceitual que me preparou para ver. As figuras de percepção da Gestalt (o todo unificado)[1] ilustram bem isso: a verdade é a moça ou a velha?










A silhueta de uma taça ou perfis humanos?

INDUÇÃO E DEDUÇÃO
Positivismo e construcionismo se afinam respectivamente com os métodos indutivo e dedutivo. Pelo primeiro, partimos do particular para o geral, de observações singulares ao enunciado de leis gerais. Pelo segundo, fazemos o caminho contrário, partimos de generalizações aceitas – premissas - para explicar casos específicos. 
Para Georges Ganguilhem (apud Bourdieu et alli), a epistemologia  contemporânea não reconhece a separação entre ciências indutivas e/ou dedutivas, nem tampouco a ruptura entre razão e experiência: uma não se dá sem a outra.
Mas, segundo Karl Popper[2], a ciência é basicamente dedutiva pois busca solucionar problemas, uma vez que a observação não se dá no vácuo, ela é precedida por um problema. Como os problemas mudam, a ciência é, portanto, provisória e seu método o do ensaio e erro. (POPPER, 1978, p. 14-16)


Segundo Benjamin[1] a procura de um método é um problema sem solução para Popper... “Nenhum critério permite demonstrar a veracidade de nenhuma teoria sobre o mundo real. Todas as teorias são conjecturas. O que diferencia as teorias científicas das demais é tão somente que as primeiras são formuladas de maneiras que as deixam expostas à refutação... O conhecimento científico não acumula um estoque crescente de verdades irrefutáveis, pois vive imerso na dialética de conjecturas e refutações. As teorias válidas em cada momento são as que ainda não foram refutadas. Teorias incertas, idéias injustificadas e antecipações ousadas são essenciais ao progresso da ciência.”

Como acentuou Ganguilhem, todo saber é polêmico, não há fato bruto em si que impeça que se levante suspeita sobre ele. O que vai trazer a diferença à pretensão científica é o rigor do método, pois o que conhecemos de uma realidade está sempre relacionado como o seu método de verificação e que, portanto, precisa ser ecplicitado.

Toda afirmação tem por fundo uma escolha epistemológica e uma teoria do objeto. Por exemplo: a afirmação de que a classe média brasileira se ampliou e que surgiu uma "nova classe média" tem por trás uma teoria das classes e da estratificação social: o que é "classe média"?  Como estaria definido o limite que distinguiria as classes? Como o pesquisador escolheu o seu critério?  Esta nova classe média veio da ascensão das classes inferiores ou do descenso dos estratos mais altos?


[1] BENJAMIN, Cesar. O sonho de Descartes – porque somos todos cartesianos. Folha de São Paulo: Ilustrissima, 18 de setembro de 2011

VERDADE
A procura do conhecimento buscaria desvendar verdades. Mas o que é a verdade?
Chauí[3] chama a  nossa atenção para três conceitos e três fontes de verdade:
  • Aletheia (grego): a verdade é uma qualidade das coisas, é o que as coisas são. A ciência é então ir além da aparência que dissimula a verdade, e alcançar a essência das coisas. É o PRESENTE
  • Veritas (latim): a verdade é um enunciado, é a coerência lógica de um relato e sua fonte é a linguagem. A ciência, no caso, depende do rigor da narrativa e de denunciar os silêncios. É o PASSADO
  • Emunah (hebraico): a verdade se fundamenta no consenso e na confiança recíproca. É o que será: FUTURO.
Chauí arremata dizendo que na sociedade contemporânea – ocidental, laica, capitalista – o que consideramos verdade é o que tenha uso prático e seja verificável de forma lógica.
Exemplo: o planeta Terra está se aquecendo? Quais as causas e efeitos? A vida terminará ou se modificará? Em quanto tempo? Podemos evitar isso? Este é o tema atual dos debates sobre as alterações climáticas (climate change) que tem acontecido nas esferas da ONU e seu IPCC – Intergovernmental Panel on Climate Change – que reúne cientistas de diversos países e ramos do saber. Na Conferência de Copenhagen (2010), duas visões polares, antagônicas, ganharam nitidez: pela primeira, a Terra está se aquecendo, por razões antropogênicas e precisamos criar consenso internacional para modificarmos políticas nacionais de desenvolvimento econômico e mudarmos para uma nova economia de baixo carbono, uma vez que os níveis crescentes de CO2 emitido pelas indústrias, queimadas e veículos automotivos são a causa do aquecimento. Pela segunda, o planeta tem ciclos de aquecimento e de resfriamento naturais, que não tem a ver com as atividades humanas, e a Terra estaria entrando em um período de resfriamento.
Sergio Abranches[4], cientista político e ambientalista, esteve em Copenhagen e descreveu os debates em seu livro “Copenhagen antes e depois”. Ele chama nossa atenção para a tentativa difícil de convergir a Política – nacional e internacional – e seu móvel, o interesse, com a Ciência e sua motivação, a curiosidade.
Política e Ciência se defrontam não apenas nos altos planos internacionais e nacionais, mas nos espaços profissionais dos cientistas. Escreveu Abranches: “cientistas são pessoas que conflitam, formam grupos, cumplicidade, interesses. Não há bons modos [...] o que está em jogo não é apenas mudança na produção e consumo, mas prestígio, notoriedade, politização e ideologização”. (ABRANCHES, capítulo 1 – O clima da ciência, p. 41). A ciência é também “uma instituição, com seus grupos de pressão, seus preconceitos, suas recompensas oficiais {...] suas instâncias administratvas, políticas ou ideológicas.” (JAPIASSU, Hilton, 1975, p. 10)[5]
Para S. Abranches a questão climática não pode ficar restrita à academia dos doutores e precisa ser transparente e inteligível. Seria construir consensos e confiança recíproca, a emunah de Chauí, para ir além de relatos e silêncios.

IDEOLOGIA, NEUTRALIDADE E OBJETIVAÇÃO OU OBJETO-CONSTRUÍDO:
Ideologia, definiu o marxista Louis Althusser, é nossa representação imaginária de nossas condições reais de existência. É uma falsa consciência, uma separação entre o que pensamos e o que as coisas são.
Toda ciência é ideológica, escreveu Pedro Demo[6]. O que a ciência deve pretender é a convivência crítica com a ideologia (DEMO, 1987, p. 33). As ciências sociais, acrescentou Cecília Minayo[7], são intrínseca e extrínsecamente ideológicas e seu objeto é essencialmente qualitativo (MINAYO, 1996, p. 21)
Não há neutralidade nas ciências, escreveu Japiassu. A ciência é um produto humano, processual, provisório. E as ciências humanas tem uma dificuldade específica, pois tratam de um objeto “que fala”. Para Minayo, as ciências humanas são históricas, situadas, e seu objeto é a intersubjetividade.
Se não são neutras, podem as ciências humanas e sociais ser objetivas?
Os metodólogos dizem que sim, através do que chamam de “objetivação”, ou “objeto construído”, ou seja, a construção do objeto. Embora o objetividade/neutralidade não seja realizável, a objetivação é possível, ou seja, um rigor de instrumental teórico e técnico  adequado e explicitado (MINAYO, 1997, p. 35). A objetivação seria “um processo de construção do objeto da pesquisa que reconhece sua complexidade e especificidade”, repudiando o “discurso ingênuo ou malicioso da neutralidade” (MINAYO). Pedro DEMO acompanha: “não trabalhamos com a realidade, pura e simplesmente, de forma imediata e direta, mas com a realidade assim como a conseguimos ver e captar[...] Não captamos a realidade, mas a interpretamos [...] o dado não fala por si, mas pela boca de uma interpretação.” (DEMO, 1987, p. 45-46). 
A objetivação,a construção do objeto, tem como ponto de partida a ruptura epistemológica, a recusa ao espontaneismo e às ilusões do saber imediato É preciso também  praticar a ignorância metódica (Durkheim), isto é, que ao penetrar no mundo social o pesquisador tenha consciência de que se aventura no desconhecido e que esteja disposto a descobrir coisas que o surpreenderão.
Em suma, a objetivação teria a ver com explicitar os instrumentos, recortes e inspirações do nosso olhar. Metodologia significa a possibilidade de outrem reconstruir o procedimento através do qual chegamos a uma dada conclusão. Significa um rigor lógico. Se é verdade que o ponto de vista, a perspectiva, cria o objeto (Saussure), é preciso explicitar esta perspectiva. 
Para Minayo, enquanto o positivismo aplicado às ciências sociais leva a quantificações que podem ser o reino do senso comum oculto sob o glamour dos números (aquilo a que M.H. Simonsen uma vez se referiu como "aritmética frívola"), a perspectiva construcionista elege os métodos qualitativos. Ela cita Dilthey e sua obra Introdução às Ciências do Espírito, onde ele afirma que os fatos humanos não seriam suscetíveis de quantificação e propõe como método a “ciência compreensiva”, a investigação sobre a construção do sentido, ou  Hermenêutica. (E, no entanto, seres humanos e suas atitudes são quantificáveis, sim, pois são previsíveis, submetidos às leis dos grandes números, segundo Gramsci. Mas isso é outro debate...)

SURGIMENTO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS, SEGUNDO WALLERSTEIN[8]:
A universidade medieval tinha quatro faculdades: teologia, medicina, lei e filosofia. No século XVIII ocorreu o divórcio entre a filosofia e a ciência. Esta se tornou empírica, baseada em observações sobre o mundo empírico. O que restava seriam especulações filosóficas O conhecimento se dividiu em Ciência e Humanidades, artes ou letras. As ciências eram empíricas e experimentais: física, química, geologia, astronomia, zoologia, matemática etc. As Humanidades se dividiam em filosofia, estudos clássicos (latim, grego, Textos da Antiguidade), história da arte, musicologia, língua nacional, literatura.
A mais antiga das ciências sociais é a História, que se pretendia empírica, mas sem fazer generalizações. A História tinha um caráter idiográfico, isto é, debruçava-se sobre fenômenos sociais únicos, não generalizáveis. O mundo moderno viu surgir três esferas sociais: o Estado, a sociedade civil e o mercado capitalista e, para lidar com elas, três disciplinas: a Ciência Política, a Sociologia e a Economia. Elas são disciplinas nomotéticas, isto é, que buscam regularidades e leis gerais. Havia um problema: História, Economia, Sociologia e Ciência Política estudavam uma porção do mundo, o mundo moderno europeu ocidental. Em expansão, era necessário uma ciência social para compreender o outro mundo. Surgiram duas: a primeira delas a Antropologia, com seus estudos etnográficos sobre os povos submetidos ao colonialismo europeu. Seu método de estudo etnográfico passou a ser definido como a observação-participante, pela qual o pesquisador vive entre o povo por um período de tempo, em pesquisa de campo, aprendendo sua língua e costumes. A etnografia se definia como estudiosa de povos sem história. Mas o mundo era mais do que o mundo moderno europeu e os povos primitivos. Existiam outras civilizações, como a índia, a China, a Pérsia e o mundo árabe. Tinham línguas comuns e uma religião que não era a cristã. Tais impérios burocráticos tornaram-se objeto de estudo de uma segunda ciência social, a dos Orientalistas, cuja pergunta erai por que tais civilizações não eram modernas. Ambas as disciplinas – Orientalismo e Etnografia – enfatizavam particularidades dos seus objetos. Tendiam a ser portanto também idiográficas, no campo das Humanidades.
Em 1945 o mundo mudou: os EUA se tornaram força hegemônica e seu sistema universitário se tornou o mais influente. Os países agora definidos como compondo o Terceiro Mundo se tornaram locus de turbulência política e de busca de autonomia. A combinação entre a expansão econômica mundial e a expansão das tendências democráticas levaram a uma grande expansão do sistema universitário. A divisão disciplinar entre ciências sociais para estudar o mundo moderno e Orientalismo e Etnografia para estudar o resto já não dava conta da necessidade dos EUA em analisar fenômenos como o do surgimento do partido comunista chinês. Enquanto isso, no bloco soviético comunista estudava-se o “modo de produção asiático, um Orientalismo com uma perspectiva marxista. Foi criado então nos EUA o “estudo de área” (área studies) reconciliando estudos de natureza idiográfica com pretensões nomotéticas. Um conceito operou a síntese: o de desenvolvimento e sua teoria dos estágios. Outros debates surgiram dentro do tema do desenvolvimento: teoria cepalina, teoria da dependência... Em 1945 na França, no seio de um grupo de estudos chamado de Annales, que tinha uma tônica idiográfica, surgiu o nome de Fernand Braudel: ele criticava a história episódica (événementielle), idiográfica, e também criticava a ambição nomotética da  busca de verdades eternas dos cientistas sociais. Entre tais extremos, propôs o conceito de dois tempos sociais: o tempo estrutural, de longa duração, mas não eterno e o dos processos cíclicos dentro das estruturas. E foi assim que Wallerstein situou o surgimento de uma nova proposta disciplinar que denominou de Análise dos sistemas-mundiais, na qual a unidade de análise não é mais o estado nacional. Esta análise tem por objeto as economias-mundo e os impérios mundiais e o EspaçoTempo, e não se limitam a uma estrutura política unium complexo com uma situação de “quase-monopólio”.
Que tipo de pesquisa então se faz a partir deste arcabouço conceitual? Veremos ao final, no último módulo do curso. Por enquanto, a atenção dada a esta proposta de Wallerstein foi para mostrar uma análise que explica o surgimento das ciências sociais e humanas e seus métodos a partir da economia política mundial.




[1] A teoria da Gestalt , no início do século XX, resultou de investigações no campo da psicologia, lógica e epistemologia – ver http://gestalttheory.net/archive/wert1.html. A percepção percebe e define as partes e deduz o todo, mas o todo é mais que as partes percebidas.
[2] POPPER, Karl. A lógica das ciências sociais.Rio: Tempo Brasileiro, 1978.
[3] CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1995, capítulo 3 – O que é a verdade, PP. 99 -108
[4] ABRANCHES, Sergio. Copenhagen antes e depois.  Rio: Civilização Brasileira, 2010.
[5] JAPIASSU, Hilton. O mito da neutralidade científics. Rio: Imago, 1975.
[6] DEMO, Pedro. Introdução à Metodologia da Ciência. Sã Paulo: Atlas, 1987.
[7] MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento – pesquisa qualitativa em saúde.São Paulo: Hucitec e Rio: Abrasco, 1996.
[8][8] WALLERSTEIN, Immanuel. World-systems analysis – na introduction. Durham and |London. Duke University Press, 2007 (2004)